A mulher como propriedade
A lei contra o estupro veio a vigor depois da lei do casamento e, em seu significado inicial legal, jurídico e anglo-saxão, ela era tratada como um “crime contra a propriedade”*. Não contra a mulher, seu corpo, seus direitos. Contra a propriedade. Como punição, o agressor tinha que pagar uma quantia em dinheiro a quem exercia os “direitos” sobre a vítima: marido, tio, irmão. Esse valor variava de acordo com alguns fatores, como: posição econômica da mulher e sua “desejabilidade como objeto de relação sexual exclusiva”. A quantia não era paga a ela e, sim, a quem era considerado injustiçado, roubado. As escravizadas não eram contempladas pela lei. Aqui no Brasil, uma lei de 1890, dizia: “Chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não, mas honesta. Pena — se a estuprada fôr mulher honesta, virgem ou não, um a seis anos de prisão celular. Se for mulher pública ou prostituta a pena é de seis meses a dois anos de prisão.” Assim como hoje, a defesa do acusado sempre se apoiou no comportamento da mulher. Com que roupa ela estava? Como ela aguentou tanto e nunca falou nada? Como diz Betina Aptheker**, com quem aprendi essas lições, tudo isso diz muito sobre como a sociedade ainda nos vê.
Ontem, durante o momento em que era feito um aborto autorizado por lei (depois de dias em análise), uma criança de 10 anos, vítima de violência há 4 de um tio — agora foragido — , que a ameaçava de morte, foi massacrada por um grupo antiabortista que, na porta do hospital, se dizia pró-vida e também acusava de assassinos os médicos que agiram na interrupção da gravidez. Não se sabe ainda como as informações de quem ela era e de onde ela estava foram divulgadas.
A decisão da interrupção foi baseada na Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento. “Segundo o magistrado, a norma “assegura que até mesmo gestações mais avançadas podem ser interrompidas, do ponto de vista jurídico, aduzindo o texto que é legítimo e legal o aborto acima de 20–22 semanas nos casos de gravidez decorrente de estupro, risco de vida à mulher e anencefalia fetal”. (G1). Tudo dentro da lei, neste caso, a humana (dentro do que hoje o código admite, apesar de sabermos a necessidade urgente de mudanças) e regulatória.
A cada passo que avanço nos estudos sobre o feminino e diante de casos como este, algumas perguntas sem respostas ficam mais latentes como: onde estão os posts e debates do grupo antiaborto contra o homem que cometeu esse crime? E onde estão os posts e ações de homens discutindo esse problema enorme que a sociedade enfrenta de assédio, estupro, apropriação do corpo feminino? Precisamos falar sobre, falar mais, ouvir. Não é possível que em 2020 a gente ainda esteja tão perto do início do fim. De tudo.
*Do livro Estupro: O preço da sexualidade coercitiva, escrito por Lorrene Clark e Debra Lewis.
**Feminista, ativista, escritora e professora, Betina Aptheker atuou no caso Angela Davis e ministra o curso gratuito Feminism and Social Justice, no Coursera.