“Com as aulas suspensas desde meados de março de 2020, a crise sanitária empurrou milhares de meninas e adolescentes da periferia a cumprir um papel que historicamente coube às mulheres: o de dona de casa. “Não estudo nada há um ano. Fico em casa o dia todo limpando e cozinhando”, diz Stephany Rejane, de 20 anos e aluna do ensino médio, para o El País.
A mesma reportagem traz dados da pesquisa pela ONG Plan International Brasil, com 98 garotas que participam de seus projetos: “98% delas estão fazendo algum trabalho doméstico em casa. Antes da pandemia, eram 57%”, diz Nicole Campos, gerente de Estratégia de Programas da entidade.
Esse é o cenário de muitas meninas e mulheres e o assunto abriu o debate extenso, durante o isolamento que estamos vivendo, sobre relação entre o capitalismo, o trabalho doméstico gratuito e o trabalho escravo. Tudo porque o tempo em casa evidenciou e piorou todas as questões e agressões que mulheres sofrem, há séculos (literalmente), todos os dias.
A mesma pandemia trouxe à tona a importância do cuidado nas nossas vidas. Se estamos aqui hoje, é porque alguém nos alimentou, nos levou para tomar vacinas, cuidou da nossa limpeza, educação, higiene, nos transportou ao médico, à escola, brincou com a gente, cuidou das compras, casa, alimentação, nos educou. Certamente, quando você leu isso tudo, pensou em uma presença feminina na sua vida: mãe, avó, pai, tia, babá, cuidadora. Percebe como o cuidado está sempre associado a uma mulher? Só que esse trabalho geralmente é gratuito (por exemplo, uma mãe que cuida dos filhos, enquanto o marido vai trabalhar) ou mal remunerado (quanto terceirizado).
Essa relação entre o cuidado colocado pelo patriarcado como “dom natural” da mulher e o capitalismo é debatida profundamente pela filósofa, ativista e escritora Silvia Federici, que também mostra, em seus estudos documentados em livros, a consequente perda dos nossos direitos e controle sobre nossos corpos (sempre a serviço de alguém).
O trabalho de cuidado não-pago feito por mulheres representa uma economia 24 vezes maior do que a do Vale do Silício.
É um esforço que equivale a 11% do PIB. Mais do que qualquer indústria. E mais do que o dobro que todo o setor agropecuário produz.
Think Olga, no report Economia do Cuidado.
Colocando de uma maneira bem objetiva e resumida, pense nesse cenário para entender melhor a relação: enquanto a mulher está em casa cuidando da família, sem ser remunerada por isso, o homem está trabalhando fora. Ela não tem sua renda, ou seja, depende dele. Sem autonomia financeira, ela permanece presa em um ciclo de exploração, invisibilizada e sem perspectiva profissional.
Essa opressão atinge mais mulheres negras, que representam a maior parte das pessoas que exercem o trabalho do cuidado no Brasil, como domésticas ou cuidadoras. Vale também lembrar que a primeira vítima da covid-19 no Brasil foi uma mulher negra, empregada doméstica e de meia idade.
Para tentar um caminho mais humano, se faz urgente uma nova organização social e econômica, onde se criem políticas públicas que abarquem o tema, criando um cenário justo e igualitário.
Para ler e ouvir mais:
- Dois livros da Silvia Federici, traduzidos pelo Coletivo Sycorax, estão disponíveis para download gratuito no site delas.
- Masculinidades Negras e Economia do Cuidado | Um papo com os MilTons
- Da economia à família: a realidade da mulher negra no Brasil
- A distopia do cuidado no brasil opera no corpo das mulheres negras
- ONU Mulheres Américas e Caribe faz 14 recomendações para que mulheres e igualdade de gênero sejam incluídas na resposta à pandemia do COVID-19