Mana Bernardes e a cura pela expressão

REFLETE
7 min readJun 1, 2020

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Poeta, designer de relações e processos de: objetos e instalações com desenvolvimentos humanos

“Amo me vestir de coisas impossíveis. Lantejoulas de cenoura sobre um vestido que era da minha avó. Tecido é o que a gente acredita. #projetomulherraiz #projetoentrefios foto do meu parceiro: @reysilva

Conheci o trabalho da Mana Bernardes por uma ex-chefe incrível, a Ana Lucia Rangel. A Ana sempre teve olhar pro novo, pro que realmente tinha história. Ela um dia, num horário de almoço, me mostrou ao vivo as joias da Mana e foi assim que me vi curiosa em saber mais quem estava por trás de colares feito de bolas de gude, lâminas de garrafa pet e acetato.

Muitos anos depois botei o diálogo em prática. A designer e poeta fala sobre o desejo de, com suas obras, através de um processo coletivo, gerar o desenvolvimento autoral feminino e como ela tem feito esse trabalho de conexões. Ela conta mais também sobre seu fio condutor: desenhar relações, antes, durante e acima de tudo que faz.

REFLETE: Conheci seu trabalho pelas joias. E hoje me chama a atenção todo o seu trabalho de conexão com o corpo, o coração e natureza. No seu perfil, vejo que a sua descrição traz: “poeta, designer de relações e processos de objetos e instalações com desenvolvimentos humanos.” Me fala mais sobre esse seu fio condutor?

MANA BERNARDES: O fio condutor de tudo que eu faço é a minha história de vida. Comecei a fazer colar muito cedo, com 7 anos de idade, voltando de uma viagem pra uma aldeia indígena com meu pai, a aldeia Pataxó. Lá eles faziam colar com escama de peixe, com raspa de pedra, com madeira, com muitos tipos de semente… eu voltei pegando esse jeito de fazer colar com essas coisas que a gente vai achando no caminho. E o meu entorno, na cidade, era o lixo, a garrafa pet, a reciclagem. Então, eu comecei criança, inspirada nessa viagem, a fazer colar com tudo que eu achava por aí.

Com 12 anos eu fiquei dois anos sem poder ir para a escola, fiquei muito doente, com uma doença autoimune no intestino, que me deixou muito fraca e me levou a ser internada muitas vezes no hospital. E, nesses dois anos, o que me curou foi muito esse processo da manufatura, de não parar de mexer as mãos, do pensamento estar sempre no que se está fazendo, de estar presente… essa relação do pensamento com a mão. Então, o fio de condutor de tudo que eu faço é a minha própria história de vida. É exatamente como eu comecei e porquê que eu comecei: através de um processo de cura mesmo.

Um pouco mais tarde, adolescente, comecei a mergulhar na escrita, de uma maneira totalmente intuitiva…. uma escrita automática… e, na época, era tudo tão intenso pra mim que baixavam as coisas e eu nem separava as palavras. Eu já tinha uma caligrafia toda diferente e eu escrevia com tanta intensidade que as palavras vinham juntas na minha mão, uma na outra, com várias histórias que eu não conseguia parar de escrever. O grande desenho que eu faço, quando eu escrevo, é desenhar a relação.

REFLETE: E a sua parceria com o A avó veio trabalhar? Me conta mais sobre o que é o projeto, a exposição e o que ele trouxe de conexão e aprendizado? (A Avó veio trabalhar é um projeto que reúne mulheres acima dos 65 anos para produzir objetos de design).

MANA BERNADES: A Adélia Borges é curadora da exposição, em Lisboa, no MUDE, que se chama “Tanto mar. Fluxos Transatlânticos do Design”. E, quando ela me convidou para participar, falou: “Olha, Mana, eu conheço um projeto em Portugal que eu acho que você vai amar, que tem tudo a ver com essa sua forma de realizar, através de processos”. Fiz primeiro uma viagem de pesquisa. Visitei muitas fábricas, muitos materiais, muitas possibilidades. E, quando eu voltei, eu não conseguia parar de pensar em desenhar a própria obra das avós e no que eu podia desenhar que pudesse ser interessante fazer junto. Assim, veio a ideia da espiral poética, grandiosa, toda bordada por elas e por essa relação. E aí… eu me entreguei aos deuses do processo. Eu desenhei a espiral como um esqueleto, como uma base, mas eu não sabia do que ia ser feita, se ia ser feita de papel, de linho, de fibras vegetais. E eu não sabia o que ia ter exatamente dentro dela, se ia ser pintura, se ia ser bordado, o que seria.. e, pra tudo isso, eu me permiti um tempo generoso. Foram três idas para Portugal e, nessas três idas, isso foi se resolvendo com as avós, no processo das vivências. Eu fiz todo um processo terapêutico delas me contarem a história de vidas delas, da gente se conhecer de uma forma um pouco mais profunda. Essas respostas sobre ser bordado, sobre ser um linho que vem do Porto vieram através do desenho de relação, escutando a história que elas têm com o bordar, a vontade e a habilidade delas. É no processo que as respostas são dadas mesmo.

REFLETE: Eu sou do Sagrado Feminino e ancestralidade e linhagem materna são muito importantes pra mim como mergulho no que hoje sou e falo. Cura e reverência. Eu vejo isso no Entrefios e no Ritos do Nascer ao Parir. Queria que me falasse sobre a sua relação com o seu feminino. E como isso se conecta com sua ancestralidade e com o que ainda virá.

MANA BERNARDES: Que lindo que você estuda o Sagrado Feminino! Pra mim, é um processo bem natural. O Ritos do Nascer ao Parir levanta a pergunta: de que maneira eu posso me atualizar com esse feminismo atual, que tem tantas coisas que acho lindas (e tem coisas que também acho às vezes agressiva e um pouco falsas)? E não tem pra mim atualização maior do que reverenciar a minha própria mãe, do que mostrar pra ela o quanto a escutei ao longo da vida. Esse livro fala um pouco isso. O Entrefios — que foi adiado — também fala sobre relação com mães, avós, ancestrais femininas e dramas amorosos.

A minha relação com o meu feminino é super complexa, porque eu tenho um lado masculino muito forte. A expressão do meu trabalho é muito feminina e talvez até o tema seja feminino como uma necessidade de equilíbrio que eu tenho; porque eu me sinto num mundo completamente masculino, que é esse mundo da articulação e da produção necessária pras coisas levantarem. Não é um mundo da intimidade, da célula mais delicada…. é um mundo, às vezes, muito agressivo, guerreado. E uma forma d’eu mesma me trazer pro mundo feminino é criar grandes projetos que me tragam pra ele, pra dar um contraponto a um excesso de masculinidade que eu mesma tenho pra realizar os próprios projetos, que…. são femininos. Tem outros lados que são muito femininos no meu trabalho, como a própria escrita feita à mão, que é uma espécie de artesanato. Mas, isso tudo não é exatamente harmonioso. É uma relação de “vou fazer um grande projeto feminino e, no fundo, isso vai me ajudar a equilibrar a própria força que botar esse projeto no mundo requer, que é tão masculina”. É um pouco isso.

REFLETE: A gente costuma dizer, no Sagrado, que hoje a gente dá voz a mulheres que não puderam falar. E, com isso, curamos quem veio antes, a gente e linhagens para a frente. Como você hoje vê a voz feminina e sua importância?

MANA BERNARDES: Com certeza, a gente precisa dar voz a todas as mulheres. A gente precisa de mais mulheres autoras, líderes no mundo. A voz feminina é fundamental. A mulher é mais ligada ao processo, ao todo do que está acontecendo. É muito importante ter mais diretoras de cinema mulheres, mais mulheres na política, mais mulheres em posição de liderança, porque isso vai, ao meu ver, salvar o mundo. Esse mundo masculinizado que a gente atravessa, de líderes homens, virou um projeto falido, né? A nossa ética, a nossa sensação de justiça, a nossa visão sistêmica é muito importante pro lugar horrível em que o mundo chegou hoje.

Mana e Manuscritos, lançado em 2011

REFLETE: O mundo, a meu ver, é feminino. Vejo as mulheres trabalhando sua escuta empática. Seu lado de cuidadora do entorno. E, com isso o cuidado com o que se planta e colhe — fisicamente e espiritualmente. Tem uma música que amo, que pergunta: Que mujer eres tu que guarda el sol en su vientre, que mujer eres tú, mujer serpiente… Que mulher é Mana Bernardes?

MANA BERNARDES: Nossa! Se eu soubesse! rsrsr

Eu não sei exatamente que mulher sou eu… sou uma mulher trabalhadora, com certeza… sou uma mulher realizadora…. Eu sou uma mulher que quer trazer muitas mulheres comigo e quero profundamente incentivar o processo de novas líderes, trazendo sua voz pra ecoar sua poesia pra fora, entendendo a arte e a expressão como um processo de cura do nosso próprio karma. Essa sou eu. Eu acredito na cura através da expressão.

REFLETE: Eu sempre fecho as entrevistas ampliando a roda e pedindo que cada mulher indique três outras mulheres inspiradoras. Quais você indica?

MANA BERNARDES: Primeira é a minha mãe, Rute Casoy, uma mulher muito transformadora e culta. Ela tem um instagram chamado Parto das Palavras e é uma mulher muito forte, mas que não teve essa força masculina de assumir o seu lugar, de colocar o trabalho no mundo com tanta força para que tantas pessoas pudessem ouvir. Eu tenho, atualmente, um desejo de trabalhar pra que a voz dela seja mais ouvida, porque acho que ela tem um recado muito importante para dar para nós mulheres. Depois, a Jade Mariani, que está trabalhando comigo e tem um trabalho autoral lindo, de bordado com desenho. E a terceira mulher é a Louise Bourgeois, uma artista que foi muito importante pra mim e que me inspirou muito. Tem outras mulheres que me inspiram, como a Nise da Silveira, que foi uma mestra… e muitas mais.

*Republicação de entrevista postada originalmente em junho de 2018.

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