Retrospectiva REFLETE 2020

REFLETE
8 min readDec 18, 2020

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Assuntos que chamaram nossa atenção e nos fizeram pausar

2020 veio para tirar a gente do eixo e, por mais que os dias tenham todos se confundido e a gente tenha mudado a nossa relação espaço-tempo, o ano está chegando ao fim. Com isso, é inevitável pensarmos em assuntos dentro do feminismo, que nos marcaram, principalmente nesses 9 meses de isolamento, trazendo — ou abrindo debate para — novas e urgentes perspectivas.

Criamos essa retrospectiva, sem maiores pretensões, mas com a vontade de levar vocês para essa reflexão junto com a gente.Tem coisas positivas e negativas, que levam para possíveis caminhos nessa jornada chamada…vida.

Com a pandemia, vimos o quanto mulheres foram sobrecarregadas. De março para cá, metade das brasileiras passou a cuidar de alguém e 41% afirmam estar trabalhando mais do que antes. As informações são fruto de uma pesquisa de percepção realizada pela organização de mídia Gênero e Número, em parceria com a SOF Sempreviva Organização Feminista, com 2.600 mulheres. Os dados também trazem recortes e mostram que as mulheres residentes em áreas rurais e negras assumiram mais responsabilidades com relação ao cuidado do outro — no primeiro caso, 62% passaram a ter essa responsabilidade.E que as mulheres negras parecem ter menos suporte nestas tarefas.

Que nós acumulamos, há muito tempo, funções de trabalho e de cuidados com a família e a casa, nós já sabíamos. Mas, agora ficou mais evidente o quão desproporcional é esse peso. Com isso, a questão por trás de tudo, econômica, social e estrutural, foi levantada: por que não pagamos o que é justo para quem cuida do outro? E por que, na maioria dos casos, são as mulheres que ganham essa responsabilidade?

A lei do feminicídio completou 5 anos este ano. E essa vitória, conseguida pela Maria da Penha, não é ainda suficiente para barrar o número de casos. Durante a pandemia, 12 estados relataram o aumento das mortes, totalizando 22% de crescimento em comparação ao ano passado.

O feminicídio é o assassinato de uma mulher, competido pelo desprezo que o autor do crime sente quanto à identidade de gênero da vítima. E os fatores que explicam seu aumento é a convivência mais próxima dos agressores, que podem impedir denúncias e idas à delegacia ou centros especializados.

Pensando em uma solução que facilitasse a denúncia de violência doméstica por parte das vítimas, a loja online Magalu criou uma ferramenta: um botão no seu app, exclusivo para este fim.

Em tempo: se você está sofrendo violências ou sabe de alguém que está, denuncie, anonimamente pelo 180.

Em agosto, uma menina de 10 anos, moradora do Espírito Santo, denunciou o estupro que sofria há 4 anos, por parte do tio. Por conta disso ela engravidou e recorreu ao seu direito ao aborto, previsto por lei. Fora a dor de toda essa violência, no dia em que ela se encaminhou para o procedimento, o Brasil se deparou com a imagem de um grupo antiabortista que, na porta do hospital, se dizia pró-vida e também acusava de assassinos os médicos que agiram na interrupção da gravidez. Não se sabe ainda como as informações de quem ela era e de onde ela estava foram divulgadas, já que são dados sob segredo de justiça. No local, quem impediu que os ativistas antiaborto invadissem o hospital foi o Fórum das Mulheres de Pernambuco.

A cada passo que avanço nos estudos sobre o feminino e diantes de casos como este, algumas perguntas sem respostas ficam mais latentes como: quando levaremos a sério a violência infantil? E por que ela acontece tanto e não é confrontada? Vale dizer que a maior parte das vítimas de estupro no Brasil são meninas até 13 anos (53,8%) e a maioria dos abusadores são familiares ou pessoas próximas à família.

Como denunciar:

Disque 100: canal do Governo federal que recebe denúncias de violação dos direitos humanos. Funciona 24h também em domingos e feriados, a denúncia pode ser anônima e a ligação é gratuita.

Conselho Tutelar: principal órgão de proteção a crianças de adolescentes. Contatos podem ser encontrados no site de cada prefeitura.

Polícia Militar: em casos de emergência, disque 190. Ligação gratuita e funciona 24h, bem como as delegacias.

Entre as séries do ano, a gente destaca O Gambito da Rainha, Mrs America e I May Destroy You.

A primeira, baseada em um livro, conta a história de Beth Harmon, que passando por cima de um ambiente machista, se destaca, super jovem, como campeã de xadrez, vencendo os jogadores mais talentosos do mundo e ganhando respeito de todos. O Gambito da Rainha se tornou a mais assistida da história da Netflix.

Mrs America traz como tema o embate entre Phyllis Schlafly, uma anti-feminista, e Gloria Steinem, uma feminista que luta pelos direitos iguais. Baseada em fatos reais, mostra o trabalho de ativistas importantes, como Betty Friedan e Shirley Chisholm. Ao mesmo tempo, deixa claro o quanto algumas mulheres estiveram (e estão) desconectadas da consciência de que o praticam se enquadra, sim, no feminismo e/ou que só podem exercer determinadas funções em sociedade graças às conquistas do movimento.

I May Destroy You é inspirada em fatos reais vividos por Michaela Coel, roteirista, co-diretora e protagonista da série. Nela, a personagem Arabella, uma influencer, sofre um estupro, do qual só lembra depois e em fragmentos, já que o abusador colocou drogas em sua bebida, sem ela perceber. Mas, a série vai além dessa questão, partindo para reflexões sobre os limites entre abuso e consentimento.

Em junho, vimos o Pequeno Manual Antirracista da filósofa e escritora Djamila Ribeiro alcançar o posto de livro mais vendido no Brasil. Seus outros dois — Quem tem medo do Feminismo Negro? e Lugar de fala — também ficaram, respectivamente, em quinto e décimo lugar na lista de best-sellers.

Djamila também é organizadora da coleção de livros Feminismos Plurais, que geraram debates que se transpuseram para lives em seu perfil e cursos.

Dos lançamentos que ouvimos, nos marcou Bom Mesmo é Estar Debaixo D’água, de Luedji Luna, que propõe um passeio audiovisual pelas 12 faixas do álbum, realizado durante sua gravidez.

As letras e poemas que integram o trabalho trazem nomes de outras mulheres negras, como Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Tatiana Nascimento, Dejanira Rainha Santos Melo e Marissol Mwaba.

Praia dos Ossos, criado pela Rádio Novelo, traz à tona o assassinato de Angela Diniz, para falar sobre feminicídio. Em 6 episódios, fruto de mais de 1 ano de pesquisa e entrevistas, é percorrida uma linha do tempo de 3 anos, onde, Doca, réu confesso, se torna vítima.

Em The Happiness Lab, Laurie Santos divide pesquisas científicas em torno da busca pela felicidade, mostrando que nem sempre sabemos e/ou perseguimos o que realmente nos torna feliz. O podcast é fruto da aula que Laurie dá em Yale — The Science of Well-Being — e que se tornou a mais procurada em 300 anos de existência da renomada faculdade.

Em um momento onde ser otimista pode gerar culpa, mas pensar 100% do dia sobre o cenário atual leva a um desânimo completo, achar o meio termo entre humor e consciência não é algo fácil. A atriz Maria Bopp conseguiu unir os dois em sua personagem Blogueirinha do Fim do Mundo, criando esquetes, em seu IGTV, a partir de críticas precisas e atuais que passam por política, desigualdade social, racismo e autoestima. A grande surpresa, sempre, é como ela consegue unir em um mesmo roteiro assuntos que normalmente não aparecem juntos, como, por exemplo: política e maquiagem.

Por que precisamos de mais mulheres (cis e trans), mais negras e mais indígenas, no poder? Por um motivo simples e sobre o qual nem precisamos pensar muito para concordar: quando ampliamos o olhar, reunindo diferentes vivências e culturas, nos tornamos mais completos.

Este ano, no Brasil, tivemos recorde de candidaturas femininas na disputa pelas prefeituras e câmaras municipais. Em Niteroi (RJ), Benny Briolly foi a primeira vereadora trans eleita. Vale dizer que essa também foi a primeira eleição municipal da nossa história em que candidatas e candidatos trans puderam optar pelo nome social nas urnas.

Mas, apesar das conquistas, ainda temos pouca representatividade: 12% de mulheres candidatas a prefeitas foram eleitas, contra 87,9% de prefeitos. Vale lembrar que representamos 51,8% da população e mais de 52% do eleitorado brasileiro.

Outro alerta é a violência que muitas sofrem quando atingem os cargos de poder, de ameaças, assédios e abusos, como vimos hoje no caso onde a deputada Isa Penna tem o seio apalpado por um deputado, durante votação na Assembléia Legislativa, sob os olhos de todos.

Dois projetos foram entrevistados pelo REFLETE esse ano: o Capacitrans RJ e o EusouEu.

O primeiro, tocado por Andréa Brazil, foca na profissionalização de trans, através de formações em diversas áreas. Andrea também mantém o projeto Transfiguração, de vestes litúrgicas, apadrinhado pelo Padre Luiz Coelho.

O EusouEu surgiu em 2017, após debates e encontros entre egressos do sistema prisional. Hoje, conta com 5 integrantes, todos ex-carcerários, com foco em informação e inserção profissional, através de cursos e palestras.

Outro movimento, que vemos como continuação de todo o levante gerado pelo #metoo e #meuprimeiroassedio, foi o holofote colocado em cima de abusos e assédios sexuais e morais que mulheres sofrem todos os dias e de como esse comportamento está enraizado e institucionalizado. O ápice dessa questão por aqui foi o caso Mari Ferrer, promoter que acusou o empresário André de Camargo Aranha de tê-la violentado sexualmente. Em julgamento, ela foi agredida pelas palavras do advogado responsável pela defesa do empresário, ouvindo insultos, como “jamais teria uma filha do seu nível”. Teve fotos suas expostas em poses, tratadas por ele como “ginecológicas”, como se houvesse qualquer ligação entre elas e o que ela sofreu. E ainda teve que ouvir do mesmo, ao chorar e pedir respeito, um: “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e lágrima de crocodilo.”

Nosso desejo daqui pra frente é: reflexão, escuta, escuta, voz, coerência e justiça.

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